quinta-feira, 23 de maio de 2013

RESISTÊNCIA, RETORNO A ESSE TEMA

“- Por então, que mesmo após o tratamento que vocês fizeram na minha casa, as pulgas voltaram? “- Deve ser um problema de resistência, dona. As pulgas não morrem mais com os inseticidas que aplicamos. Vamos refazer o tratamento, usando coisa bem mais forte!” Esse diálogo imaginário (mas, muito comum na realidade) mostra que boa parte de nossos profissionais controladores de pragas está bem desinformada sobre o fenômeno biológico da resistência ou mostra um enorme desconhecimento desse assunto. Como recentemente ouvi em uma empresa comercial que visitei que, a razão do fracasso no tratamento executado por uma desinsetizadora tinha sido a “resistência”, resolvi voltar a falar um pouco desse tema, tentando esclarecer e talvez tirar dúvidas. Resistência, em biologia, é o desenvolvimento, em uma determinada linhagem de pragas (insetos, roedores, artrópodes, etc), da capacidade de suportar doses de agentes tóxicos que seriam normalmente letais para a maioria dos indivíduos numa população da mesma espécie. Resistência é um fenômeno com base genética e é hereditário (é transmitida de geração para geração), o que a torna diferente de tolerância que é um fenômeno individual e que não se transmite de pai para filho. A tolerância aparece sempre na presença de um determinado biocida, enquanto a resistência surge espontaneamente mesmo sem a presença do biocida contra o qual o animal demonstra ser resistente. Fala-se em resistência múltipla quando uma linhagem de insetos (ou outras pragas) é capaz de resistir a vários e diferentes compostos, às vezes de grupos químicos diferentes e com modos de ação também diferentes. Fala-se em resistência cruzada quando ocorre seu surgimento em uma população induzida por um determinado biocida, mas que deflagra a resistência também a outros biocidas de outros grupos. Neste caso, o que se sabe é que o elo comum é um mesmo sítio de atuação dos biocidas envolvidos. Por exemplo: resistência cruzada entre piretróides e organoclorados onde ambos agem nos canalículos de sódio presentes nas membranas celulares dos neurônios (as células responsáveis pela transmissão dos estímulos nervosos); ou entre organofosforados e carbamatos, pois ambos agem na inibição da colinesterase, o enzima essencial para a transmissão do estímulo nervoso de um neurônio para outro. Interessante notar que pode existir a chamada resistência comportamental: uma população aprende a evitar os pontos e áreas onde o biocida foi aplicado e assim vai levando a vida espertamente. As pragas podem se tornar realmente resistentes através de diferentes mecanismos. Tipicamente em roedores (mas não só neles) através de modificações celulares hepáticas e tissulares, o individuo consegue continuar a fabricar a vitamina K1 mesmo na presença dos anticoagulantes (ingredientes ativos dos raticidas hidroxicumarínicos ou indadiônicos) e assim, não é eliminado pelas doses usuais empregadas. Outro mecanismo é uma maior produção de enzimas degradativas, como oxidases, esterases, hidrolases e transferase que eliminam mais rapidamente certos agentes tóxicos que penetraram nos indivíduos. Às vezes, esses enzimas nem sempre são produzidos em maior quantidade, mas podem se tornar mais eficientes devido a pequenas modificações estruturais nas células do indivíduo. De qualquer sorte, a base da resistência é sempre genética; lá nos gens do indivíduo ocorre uma mudança ou o surgimento do gen da resistência. Vocês pensam que é fácil surgir resistência em uma determinada linhagem de uma praga? Não é, não! Uma enorme cadeia de eventos biológicos em sucessão precisa acontecer para que a verdadeira resistência se instale. Portanto, não fique pronunciando o santo nome da resistência em vão, porque, além de demonstrar pouca familiaridade com os fenômenos biológicos (especialmente se você estiver dialogando com algum individuo que tenha formação biológica), provavelmente você vai para o inferno ou, no mínimo para o purgatório, tamanho o pecado cometido!

domingo, 5 de maio de 2013

A VEZ DAS LACRAIAS (ESCOLOPENDRAS)

Há alguns meses atrás, Lourenço, um profissional controlador de pragas do Rio de Janeiro, nos escreveu anexando uma foto e perguntando se o animal em questão era uma lacraia ou simplesmente um gôngolo (ou piolho de cobra, vide post já publicado). No caso, era mesmo uma lacraia. Desde então estou para escrever um post sobre esses artrópodes peçonhentos e agora chegou a vez deles. Para começar, as lacraias (também chamadas de escolopendras) são animais peçonhentos, ou seja, fabricam um veneno e têm equipamento para injetá-lo, ao contrário dos sapos que produzem veneno, mas não possuem equipamento para injetá-lo, sendo, portanto, apenas animais venenosos). Assim sendo, onde encontradas, as lacraias podem se tornar uma ameaça a pessoas e animais, ainda que sua peçonha não seja lá muito potente. As lacraias têm um corpo anelado e alongado (15 a 17 cm em média de comprimento quando adultas, mas há espécies que podem ter até 23 cm) com 21 segmentos, cada qual com uma placa quitinizada dorsal e outra ventral; dos dois lados a quitina (que forma o exoesqueleto do animal) é bem menos espessa onde se encaixa um par de pernas por segmento, terminadas por tarsos muito ponteagudos destinados à locomoção. Mas, o vigésimo primeiro par de pernas é mais longo e dotado de espinhos e servem para agarrar a presa (as lacraias são caçadoras e se alimentam de outros artrópodes como aranhas, de lagartixas, de pequenos pássaros e até mesmo camundongos). Mas, as lacraias desenvolveram um verdadeiro arsenal de armas para capturar e matar suas presas, além desse último par de pernas. Em cada perna, no fim do segundo tarso (um antes do tarso terminal) existe uma garra terminal em mais duas garrinhas bem pequenas; cerdas sensoriais enervadas dão às lacraias a capacidade de pressentir a proximidade de uma presa que é então firmemente agarrada, num giro vigoroso e de impressionante rapidez; dobra ela o corpo e injeta sua peçonha mortal através de dois dardos possantes e volumosos situados dos dois lados da cabeça. Muitas espécies de escolopendras podem ser encontradas no Brasil, Chile, Colômbia, Venezuela, México e outros países da América Central. Em nosso país, são muito comuns na região amazônica, Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul; são menos frequentes no sul e sudeste. A maior de todas as lacraias é a Scolopendra gigantea que pode ter até 26 cm de comprimento. As lacraias são animais estritamente noturnos e evitam a luz do dia; vivem em galerias pluviais, canalizações subterrâneas, em áreas verdes onde haja troncos em decomposição onde avidamente procuram larvas de besouros e de outros artrópodes. Vivem solitárias, como sói ser a regra dos animais de rapinagem, caçadores. Ferozes, caçam suas presas vivas, imobilizam-nas com as últimas pernas e os 20 pares de garras e as matam perfurando sua carne com as pinças em forma de foice, injetando seu veneno. Têm vida longa e existe separação de sexos; as fêmeas ou botam ovos ou algumas espécies são ovovivíparas. Com tudo isso, entretanto, o veneno das lacraias não é potente o suficiente para causar danos ao ser humano, nem mesmo à crianças de pouca idade. Razão pela qual não existe um soro antilacraia já desenvolvido. Em áreas onde as lacraias podem causar impacto e/ou incômodo às pessoas, o combate pode ser feito através da pulverização de algum biocida pó molhável ou pó solúvel nos possíveis pontos de esconderijo das escolopendras, geralmente ao ar livre nos jardins e matas adjacentes; eventualmente as lacraias podem se alojar nos porões de residências, garagens e depósitos de pouca ou nenhuma luz natural.