domingo, 31 de janeiro de 2010

NOS PRIMÓRDIOS DA RESISTÊNCIA

Gosto muito de História. Devoro rapidamente qualquer livro que se relacione à qualquer período da civilização e, não raro, fico buscando na Internet, sempre que posso (significa: quando encontro tempo), este ou aquele fato histórico que me chamou a atenção. Vez ou outra, deparo-me com alguma informação um tanto rara ou não tão conhecida e fico ansioso para compartilhar o novo conhecimento com outras pessoas. Foi o que aconteceu bem recentemente, quando eu escrevia um tema para a revista da ABCVP; encontrei algo que aproveito para compartilhar com meus leitores que também possam ser interessados por história, ainda que seja da série Cultura Inútil. Aliás, sou tão aficcionado da Cultura Inútil que em meu próximo GTO (Guia Técnico Operacional) em fase de preparação, vou incluir um capítulo só sobre Cultura Inútil!
O fenômeno da resistência em roedores sinantrópicos aos raticidas anticoagulantes despertou minha atenção há tempos e sempre busquei saber mais sobre o tema. Fascinante! Desde os mecanismos bioquímicos mais intrincados, a base genética, o impacto que causou nas abordagens técnicas de seu controle e tudo mais que se relacione. Pois não é que encontro em um antigo exemplar da revista England off Magazine, a descrição detalhada da primeira vez que surgiram roedores resistentes no mundo. Vou tentar reproduzir o que teria acontecido, contando esse “causo” do meu jeito, por suposto.
A história começa lá por volta de 1938 ou 1939, quando pesquisadores norteamericanos sintetizaram uma substância anticoagulante a partir da secreção de uma árvore africana chamada pelos locais de cumarú (Haba tonka) que provocava fortes hemorragias nos animais que a ingeriam. Foi dado o nome técnico de warfarin (as iniciais do Wisconsin Alumni Research Foundation) que no Brasil e na França foi denominado de cumarina. Amplamente utilizada durante a II Grande Guerra (1939 / 1945) para combater com sucesso os ratos nas trincheiras, logo esse composto ganhou forma comercial e foi amplamente adotado e utilizado em todo o mundo. Em 1955, por exemplo, a warfarina e outros compostos do mesmo grupo dominavam cerca de 79% de mercado mundial de raticidas. Nessa época, parecia que o homem, finalmente, havia vencido sua milenar guerra contra os ratos, embora alguns especialistas da época já tivessem começado a alertar sobre os riscos de utilizar maciçamente um único tipo de raticida, no que não foram ouvidos. Não deu outra!
Pouco tempo depois, um competente veterinário escocês conhecido como Dr.Reynold, típico do interior, aceitou um emprego público de assistência à pecuária indo substituir um colega no condado de Brunswich, perto da cidade de Perth na Escócia e lá acabou ficando por nove anos. Assistia entre outras da região, à Fazenda Coy onde uma crescente população de ratazanas estava causando prejuízos. Uma firma distribuidora de defensivos agrícolas e veterinários, T.R.Hammet, vendia produtos à base de warfarina e seu vendedor, Sr.Norton, impressionou favoravelmente o Dr.Reynold que passou a indicar durante três anos seguidos o raticida conhecido na região como “veneno americano” para as fazendas a que dava assistência. O resultado sempre era montes de ratos mortos, sendo queimados todas as manhãs com gasolina. As corujas da região começaram a ter que buscar alvos alternativos, tal o sucesso daquele raticida!
Lá pelo dia 15 de setembro de 1960, o Dr.Reynold recebeu um chamado de emergência da fazenda dos Coy onde presenciou um espetáculo impressionante: milhares de ratos em toda parte, nos celeiros, nas adegas, nos cercados, nos depósitos e até dentro da própria casa da fazenda. Ratos cevados e robustos. Milhares de manchas escuras que se movimentavam desordenadamente no solo. Atônito, Dr.Reynold prontamente foi localizar as iscas com warfarina que ele próprio havia distribuído no terreno, mas estas haviam simplesmente desaparecido. Dr.Reynold, intrigadíssimo, voltou a seu escritório para dar uma olhada em seus livros técnicos, mas não encontrou resposta. Naquela mesma tarde telegrafou para o Departamento de Agricultura de Edimburgo, a capital da Escócia, pedindo ajuda. Eis o texto do famoso telegrama: “Situação emergência. Colossal colônia ratazanas imunes à warfarina está destruindo colheita fazenda Coy. Peço urgente envio inspetor”. De Edimburgo, a notícia chegou a Londres. Duas semanas se passaram sem nada acontecer até que a burocracia fosse vencida e fosse enviada a Brunswich uma comissão de funcionários para averiguar a veracidade e extensão do problema relatado concisamente pelo Dr.Reynold em seu aflito telegrama. Bem típico dos ingleses, não! Pois é! A tal comissão voltou correndo a Londres, em pânico. A situação não era grave, era gravíssima! Se aquela colônia de ratos se espalhasse, toda a colheita da região estaria em risco. Afinal, na Grã Bretanha, havia apenas duas toneladas de outros tipos de raticidas diferentes da warfarina; ia ser preciso importar rapidamente raticidas não cumarínicos. O Condado de Brunswich foi então transformado em um verdadeiro quartel general fervilhando de técnicos e operadores, comandados por um general taciturno que pertencia ao Corpo de Química do Exército Real. A estratégia central da batalha desenhada pelo general, era provocar a saída das ratazanas de seus túneis subterrâneos e matá-las depois que saíssem! Simples. Mas, como fazer para tirar esses ratos de seus esconderijos? O general (um químico) sugeriu que fosse usado um gás vesicante (mostarda) utilizado na Primeira Guerra Mundial que, provocando queimaduras na pele dos soldados, os forçava a remover a máscara antigás. Funcionaria contra ratos? E depois, era matá-los a cacete, a porretadas ou qualquer outro meio disponível.
A cena desse singular combate tinha algo de irreal: logo cedo muitos soldados do Corpo de Química, trajados com macacões brancos especiais que não deixavam um centímetro quadrado de pele exposta e usando máscaras antigás que cobriam completamente a cabeça, iniciaram a batalha. O gás foi sendo progressivamente injetado sob pressão em todas as tocas espalhadas na área da fazenda. As ratazanas imediatamente começaram a sair aos milhares com os olhos queimados pelo gás e aturdidas, foram presas fáceis para outros soldados armados com bastões e paus pontiagudos; algumas foram mortos a tiro de carabina. A frente de batalha atingia uma área de 70 milhas quadradas e foi dividida em 10 setores; a campanha durou duas semanas e foram contados nada menos que 56.000 cadáveres de ratos. Ao menos aquela ameaça fora vencida! Um pesquisador inglês chamado Boyle, logo depois estudou profundamente esse episódio e concluiu que aparentemente havia surgido uma linhagem de Rattus norvegicus resistente à warfarina. O fato é que aos poucos começaram a surgir relatos de outras localidades igualmente infestadas por ratazanas resistentes à warfarina e progressivamente a resistência foi sendo detectada cientificamente em outros países e se espalhou por quase todos os continentes. No Brasil, em 1983, em São Paulo (dois mercados municipais), estudados por este blogueiro. Outras espécies sinantrópicas passaram a evidenciar também serem resistentes e a coisa foi por aí afora!
Hoje, sabemos muito sobre esse fenômeno e até o gene responsável pela resistência em roedores já foi mapeado (veja post anterior neste mesmo blog). Surgiram então os raticidas anticoagulantes de segunda geração (dose única), eficazes contra roedores resistentes, mas, de outra parte, já há indícios de resistência também a esses raticidas em alguns pontos do planeta (para variar, na Grã Bretanha).
Já viu, não é? Vamos ter que começar tudo de novo!
P.S: um grande abraço Dr.Reynold, colega, esteja onde estiver!

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