domingo, 14 de fevereiro de 2010

CRENÇAS E CRENDICES (PARTE I)

Vez ou outra, nas minhas andanças, deparo-me com algumas confusões conceituais de colegas profissionais controladores de pragas, seja por repentinos lapsos de memória, seja por mera desatenção, seja porque apenas repete o que ouviu dizer, seja por desconhecimento de causa mesmo. O fato é que alguns profissionais citam certas pragas como causadoras deste ou aquele problema, em completo desacordo com o conhecimento técnico já existente. Por exemplo: roedores transmitindo a Raiva, Leptospirose via latinha de cerveja, baratas como transmissoras eventuais da Febre Amarela e por aí vai. Então, até para surpresa de alguns, vamos ver se esclarecemos algumas dessas crendices e embasar certas crenças.
- Roedores são transmissores potenciais de 32 doenças ao homem (zoonoses) e a outros animais, mas não os incriminem pela transmissão da Raiva. O vírus rábico, potencialmente perigoso e mortal para todos os mamíferos já estudados, ao penetrar de alguma forma em um roedor (coisa meio difícil de ocorrer na Natureza), provoca uma sintomatologia algo diferente. Ao invés de passar pela fase furiosa (fase em que cães e gatos por exemplo tornam-se extremamente agressivos e mordem transmitindo o vírus pela saliva), passa direto da fase prodrômica (a fase inicial onde o vírus apenas se multiplica dentro do hospedeiro) para a fase paralítica. Quer dizer um rato que contrai o vírus rábico não fica agressivo e em pouco tempo já tem as paralisias que a doença provoca; nessa condição, esse rato sequer poderia morder, mesmo que quisesse. Resultado: os roedores não transmitem a Raiva. Tanto que a OMS – Organização Mundial da Saúde – há décadas deixou de indicar tratamento antirrábico para vítimas de mordeduras de roedores.
- Latinhas de cerveja não causam a Leptospirose. Até que poderiam, sob condições muito especiais e particulares, pouco prováveis de ocorrer na prática. A Leptospirose, uma zoonose (doença transmitida ao homem por animais) muito comum em nosso país, especialmente em grandes cidades sujeitas a enchentes nas estações chuvosas, é causada por uma bactéria (espiroqueta) denominada leptospira com inúmeras espécies diferentes. Na Natureza, essas bactérias adaptaram-se perfeitamente aos roedores como seus hospedeiros permanentes, a tal ponto que neles, essas bactérias sequer provocam doença; passam a viver muito bem, alojadas nos rins dos roedores e ali se multiplicam. O roedor assim contaminado, nada sente, mas cada vez que urina, milhares de leptospiras saem para o meio externo onde vão aguardar uma oportunidade de penetrar em outro hospedeiro. No meio ambiente onde foram depositadas junto com a urina do roedor contaminado, as leptospiras permanecem por algum tempo vivas; inicialmente a própria urina, um meio líquido, as protege, mas quando a urina seca, as leptospiras têm pouco tempo de vida. Se caíram em um local úmido, sombreado e quente, vão conseguir sobreviver até uma semana ou pouco mais. Mas, se caíram em meio seco, ensolarado ou frio, sobrevivem apenas por alguns minutos. Pois bem, uma tampa lacrada de uma latinha de cerveja não é exatamente úmida, quente e escurinha, onde a leptospira pudesse sobreviver aguardando uma boca sedenta e incauta que pudesse removê-la. Ao contrário, ali é um local seco, exposto e, muito provavelmente gelado antes que venha o bocão da vítima. Mas, vamos ainda assim supor que de alguma forma essa leptospira conseguisse sobreviver na tampa da latinha de cerveja, embora eu não possa imaginar como. Vamos imaginar também que nosso bebedor estivesse com tanta sede que nem esperou a cerveja gelar. Vamos imaginar que ele (a vítima) não tivesse sentido o forte odor acre da urina de rato na tampa, embora ela estivesse a centímetros de seu nariz. Vamos imaginar que tudo isso aconteceu e que o incauto cidadão bebeu a cerveja e com ela, leptospiras que alegremente conseguiram seu intento de penetrar em um mamífero (ou deveríamos dizer “cervejífero”?) antes de morrerem. Caem no estômago de nosso amigo e ali, imediatamente vão ser eliminadas pelo suco gástrico tremendamente ácido por natureza. Quer dizer, são tantas as variáveis que deveriam ocorrer para que uma pessoa pudesse adquirir leptospirose a partir de uma latinha de cerveja, que muito dificilmente ocorreria esse caminho todo. Impossível, então? Bem, em biologia não existem as palavras “sempre”e “nunca”. Vai que o cidadão tivesse uma ferida aberta na boca ou uma úlcera esofagiana ou estomacal. Por aí as leptospiras poderiam eventual e remotamente penetrar, mas é bem pouco provável, bem pouco mesmo! Portanto, sempre é bom lavar a latinha da cerveja (ou do refrigerante) antes de ir colocando o bocão sedento para beber, mas por razões higiênicas, muito mais do que por medo de contrair leptospirose. Bebam sem medo! Mas com moderação sempre.
Obs: conseqüentemente, aquela história que circulou pela Internet do pai de uma famosa modelo que teria morrido (ele, não ela, a qual continua vivinha da silva para deleite de nossos olhos) por ter contraído leptospirose a partir de uma lata de cerveja, é conto-da-carochinha, mesmo porque aquela matéria que foi pretensamente atribuída a um professor de epidemiologia da Unesp, foi repudiada pelo indignado e incriminado autor, que afirmou que seu nome foi ali colocado por alguns estudantes, por brincadeira.
Crenças e crendices são tantas que vamos repartir o assunto em tópicos subsequentes, para que a gente possa comentar cada uma delas. Outro dia prosseguiremos com esse tema, OK?


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