quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011
MOMENTO CULTURAL I: OS ROEDORES E A PESTE BUBÔNICA (parte II)
Então, no post anterior onde eu tratava desse assunto, vimos um quadro dramático nas cidades onde a peste chegava e a epidemia se instalava e eu ia comentar sobre os “remédios” que eram usados naquela longinqua época para combater o mal. Por exemplo: usar um colar de saquinhos que deveriam conter pó de sapo e de salamandra misturados com arsênico (quer dizer, se o gajo percebesse que mesmo assim havia contraído a peste, sempre poderia tomar o conteúdo do saquinho, para abreviar o sofrimento!). Outra: sair de casa levando vasinhos ou esferas de madeira ocas contendo esponjas embebidas em vinagre; os pobres levavam uma maçã ou um limão (essa eu não consegui entender). Tinha também um tratamento que era dureza: beber a própria urina fermentada durante três ou quatro dias... eca! Para proteger-se a pessoa poderia inspirar forte e seguidamente o ar das latrinas. Tem uma outra muito boa: esfregar sobre as feridas (os bubões que arrebentavam) a cloaca de um galo jovem após arrancar-lhe as penas do rabo (má sorte dos galos, má sorte!). Como a peste deixava enfartado os bubões que surgiam na região da virilha, era recomendado esfregar bem a parte inferior dos testículos para aliviar a dor (até aí tudo bem) e depois perfurar a pele escrotal com uma agulha (ops!) e ainda introduzir no furo, um pequeno pedaço de barbante feito com a crina de um cavalo... branco! Cáspite!! Não poderia ser um cavalo qualquer?
Vai daí que, como a medicina com todos esses “remédios” falhava redondamente, aos pobre mortais somente restava buscar lenitivo na religião. Sim, a Igreja não poderia deixar passar essa ótima oportunidade de coaptar mais fiéis e bradava em todos os púlpitos que a doença era uma punição do Senhor, irado com os excessivos pecados dos homens e com a devassidão dos costumes. Dessa forma, nos dias de procissão e missas para São Roque e São Sebastião, os santos “protetores contra a peste”, uma multidão oceânica acorria entre preces e lamúrias arrependidas.
Alguma coisa importante, no entanto, era feita pelas autoridades de algumas cidades mais desenvolvidas: isolamento dos doentes e lacração de suas casas (embora em muitos lugares a família e serviçais eram lacrados juntos), o recolhimento dos cadáveres que iam para uma vala comum, começou-se a recolher o lixo e partiu-se para a eliminação de animais suspeitos de estarem disseminando a peste. Lamentavelmente, os principais culpados acabaram sendo os gatos novamente e não os ratos, porque os pobres felinos eram tidos como próximos ao demônio, uma herança cultural também influenciada pela Igreja em épocas anteriores (já comentei sobre isso, creio, em algum post lá atrás). Durante a peste de 1665, em Londres foram eliminados cerca de 200 mil gatos; resultado, a população de ratos cresceu de forma avassaladora e com ela, a peste. As cidades precisavam se defender de alguma forma especialmente do contágio vindo de fora; Veneza, em 1403, instituiu um símbolo que perdura, de certa forma, até os dias de hoje; todos os navios onde houvesse morte de marinheiros na travessia sob suspeita de peste, eram obrigados a ostentar uma bandeira amarela; o navio não poderia atracar no porto, os marinheiros eram transferidos para albergues onde cumpriam um período de quarentena e as mercadorias eram transferidas para armazens onde recebiam vapores e fumarolas durante alguns dias. Todavia, como as autoridades sempre relutavam em admitir a condição pestosa da cidade, essas medidas sempre chegavam atrasadas, quando a peste já havia invadido os muros. Resultava que os mortos se multiplicavam rapidamente.
Bem, se não havia remédio e nem prevenção, a solução era fugir da cidade, mas para onde? Os ricos ainda podiam se refugiar em suas mansões no campo, mas, e os cidadãos comuns e os pobres já em pânico? Fugiam para os bosques e campos mais afastados. Acontece que lá, os camponeses, fazendeiros e lavradores os enxotavam com medo de serem contaminados. Dessa forma, nas estradas, grupos de todos os tamanhos e verdadeiras multidões ficavam vagando sem destino, para lá e para cá, sem ter o que comer, até que o desespero e a fome os reconduzia à cidade de onde sairam e onde os esperavam, de braços abertos, a epidemia mortal e os ratos, milhares e milhares deles. Houve um momento tão dramático que os soldados saiam pelos portões, postavam-se em torno dos muros da cidade e impediam a saída de qualquer pessoa. Cidadãos comuns, artesãos, soldados, funcionários públicos, artífices, comerciantes, serviçais, professores, estudantes, donas de casa morriam às centenas todos os dias e os sobreviventes se viam diante do caos administrativo progressivo. Todas as estruturas sociais ruiam inexoravelmente. A criminalidade subia infinitamente, as prisões se esvaziaram e a polícia deixou de existir. Mendigos eram expulsos, casas ficavam completamente abandonadas. As igrejas fecharam suas portas e a classe eclesiástica encerrou-se em mosteiros onde nada e ninguém podia entrar. A família desmantelou-se e as próprias relações entre familiares, amigos e conhecidos e grupos sociais, deixavam de existir. As ruas ficavam desertas e ninguém se arriscava sair de casa a menos que fosse absolutamente necessário. Em Milão, por volta de 1630, o cidadão somente saia à rua armado de pistola e passava fogo em qualquer desconhecido que tentasse se aproximar. Tudo era trancado, tudo era proibido. Exceto aos ratos e suas pulgas mortais!
Na introdução do “Decameron” (por volta de 1351), seu autor, Giovanni Bocaccio, captura a incerteza e o medo que acompanharam a epidemia de peste que varreu a Europa entre 1347 e 1351. Dizia ele que os médicos não tinham a menor ideia do que fazer com os tumores (bubões) que devastavam o corpo das pessoas que se infectavam. Conta ele que as pessoas se voltavam umas contra as outras; pais abandonavam seus filhos, maridos às suas esposas. As ruas estavam repletas de cadáveres e os vivos não tinham tempo para se lamentar e só tinham um desejo: sobreviver a qualquer custo. Escritores medievais nos contam que os picos febris da doença deixavam as vítimas em delírio e com freqüência se via homens e mulheres vagando pelas ruas aos gritos e sem rumo. O pestoso vomitava incessantemente ou tossia sangue. Pus e sangue fluía das feridas abertas e a morte ocorria em alguns dias. Os cemitérios não tinham mais espaço para receber os mortos que eram deixados dias e dias nas ruas, onde serviam de alimentos a cães. Bebês e crianças novas choravam sem alento ao lado do cadáver de suas mães e ninguém os acudia com medo de também contrair a doença. Nessa dramática epidemia, só nessa, cerca de 25 milhões de pessoas pereceram, aproximadamente um terço da população europeia na época.
Deixo os leitores interessados no assunto com essa imagem lúgubre, cercada de cadáveres de homens, mulheres e crianças, quando os coveiros já não conseguiam dar conta do recado, mesmo porque até eles próprios começaram a morrer.
Em post próximo, sigo contando essa dramática história da peste na antiguidade, os ratos urbanos e suas fatídicas pulgas. É só aguardar um pouco.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário